Quarta-feira, 30 de Novembro de 2005

cartas de amor, cartas de guerra

O Jornal de Letras, nas bancas desde a semana passada, tem como tema, a pretexto no novo livro de António Lobo Antunes, Cartas de Guerra. Apresenta cartas que alguns nomes da nossa escrita escreveram às mulheres amadas durante o período em que estiveram na guerra colonial. Porque o testemunho é importante para a compreensão do que se passou, não só da guerra em si mas também do seu efeito nesses jovens arrancados à vida normal, e também pelo seu valor literário, aqui deixo alguns trechos das cartas.
Fernando Assis Pacheco:
”Não digas nada a ninguém: ultimamente dei comigo a ter medo de um belo dia sair do acampamento e não regressar vivo. Só quem anda por cá pode avaliar de que maneira isto não é melodrama. Penso que há mais gente com esse medo. E também se tem medo de ter medo na altura de um ataque…Que é uma sensação terrível, pegajosa, inexplicável em termos humanos. Ao fim da comissão, se me perguntarem como foi, direi que não foi nada; esta angústia é demasiado grande para um estranho perceber.
E há um país inteiro complectamente cego e surdo no ano da graça de 1963.”
”O pensamento das guerras está outra vez a abrir buracos dentro de mim. Faço um esforço enorme para não me ir abaixo. Mas não posso deixar de considerar miserável a minha situação, inadaptável como me sinto, e com uma perspectiva de pelo menos 5 meses à minha frente, 5 meses que são 150 dias de desmoronamento interior. Em N.[ambuangongo] aguentei 40 dias…”
Manuel Beça Múrias:
”Quando o barco se afastava do Cais da Rocha vi a meu lado o Roque, que chorava copiosamente e me dizia ‘Olhei lá para baixo e só consegui ver o meu pai a acenar e a gritar: “Gabriel! Gabriel!”. Só os homens verdadeiramente homens é que choram.”
”O silêncio do vale, perturbado, ainda que por instantes por detonações, aumentara o seu peso. Deixei-me estar de pé; indiferente. Passou-me pelos olhos uma espécie de tontura. Quantos de nós desejávamos verdadeiramente a morte daquele homem? Sendo assim, porque tínhamos morto um pai indefeso, que nas mão trazia apenas uma vasilha bojuda de vidro nu? Não fora por engano. O equívoco era outro, mais terrível, mais geral e, naquele momento, julguei-me a mimprórpio e àqueles trinta rapazes, para ver se me teria de voltar para eles e, ali mesmo, esquecer a emboscada, sempre iminente, e tentar explicar-lhes, com a mesma paciência com que lhes ensinara o esquerdo direito e o armar e desarmar FN, que não passávamos todos de um bando de criminosos estúpidos. “
Afonso Praça:
”Ora bem: e a que propósito vem tudo isto, dirás tu? Não é a guerra que derrota o amor mas sim este ambiente fútil em que vivemos que, na distância, rouba a vontade e a inspiração. É por tudo isto que eu continuo a escrever e escrever sempre como até aqui, mesmo que não haja notícias, mesmo que a inspiração seque. Dizia-me a minha mãe quando eu estava em Lisboa e andava muito tempo sem escrever: ‘Tu escreve-me filho. Se não tiveres notícias, pelo menos, a dizer se estás de saúde ou doente’, compreendia-a bem. Beijos do teu Afonso.”

publicado por maratonista às 10:41
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1 comentário:
De Anónimo a 1 de Dezembro de 2005 às 21:07
O pessoal agradece a publicidade gratuita e tão gentil.
Beijinhomaria joao
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(mailto:misscarlett1@msn.com)

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