Por vezes, porque assim nos obriga a memória, aqui posso escrever coisas antigas. Talvez seja uma maneira de exorcisar, que de esquecer não, talvez uma maneira de me dar a conhecer um pouco mais. Seja o que seja eu estou aqui.
Coimbra, finais dos anos 60. Existia um grupo, se é que assim se lhe poderia chamar, de rapazes e homens ligados por uma actividade desportiva. A pesca à linha. O sítio de reunião/pesca era a vala assim chamada porque era um pequeníssimo afluente do Mondego que descarregava algumas águas, por vezes sujas dos esvaziamentos das piscinas municipais. Ao fim da tarde, aí a partir das cinco e meia, começavam a aparecer armados das respectivas canas, linhas e demais equipamentos para a pesca da boga principalmente. Os nomes que eu recordo são poucos, lembro-me do Arcanjo, do barejeira (que tinha uma sorte danada). Doutros lembro-me apenas de pormenores; um era juiz no tribunal de trabalho e cerca de metade eram alunos na Escola Industrial e Comercial Avelar Brotero (entre os quais eu) e com idades entre ao 14 e os 18. O que eu quero contar tem haver com uma das pessoas de que já perdi a lembrança do nome. Trabalhador, creio que operário, nervoso, sempre a puxar pelo cigarro, militante do Partido Comunista (era eu demasiado novo para saber os problemas que daí lhe poderiam advir) ele não era dos que se costumavam meter em certas confusões que advinham daquela necessidade que todo o homem tem em competir, seja de que maneira for, com outro. Defendeu-me uma ou duas vezes quando eu, com 14 anos mas já cheio de sangue na guelra, armava aos cucos e metia-me com rapaziada 4/5 anos mais velha, que com a tropa e a guerra colonial no horizonte eram perigosos de se picar. O que era engraçado é que eu pertencia aquilo que se poderia chamar a alta sociedade de Coimbra, com ligações à Universidade, e a outra rapaziada (meus amigos, malta dos bairros operários) eram futricas (palavra que em Coimbra designa as pessoas sem ligação à Universidade).
Pois ele tinha a vida ensarilhada e eu explico já porquê. Era casado mas havia problemas. Uma vez ela tinha fugido com outro fulano e ele foi atrás dela e trouxe-a de volta. Passados uns tempos ela tornou a fugir com outro tipo e agora o problema era outro. Havia, fiquei a saber mais tarde, grandes pressões sobre ele para que tomasse uma atitude de homem, de macho, que fosse ter com ela e lhe desse uma carga de porrada. Soube, também depois , que algumas dessas pressões viriam de gente ligada ao partido dele. Só que ele gostava muito dela e se havia algo que ele nunca faria era magoá-la. Acho que começou a ficar cada vez mais isolado em tudo o que fazia e acabou por desaparecer do nosso grupo.
Algum tempo depois soubemos a notícia. Tinha-se suicidado. Esperou, ao fundo do Parque por onde passava a linha da Lousã (não muito longe, talvez uns 300 metros, do sítio onde pescávamos), e quando passou o comboio, demanhãzinha cedo, pôs a cabeça na linha.
Ainda perguntamos ao juiz se ali não haveria coisa da Pide mas ele disse-nos que não, tinha sido mesmo suicídio.
Quando nos morre alguém, seja esse alguém quem for, penso que fazemos a nós, sempre, a mesma pergunta: será que fizemos o suficiente. Isto faz parte da nossa humanidade, o de nos interrogarmo-nos se fizemos, não o suficiente, mas tudo para que o nosso irmão/camarada não caísse.
Ela. Ela. É engraçado mas esta é uma das palavras que eu mais gosto. É a feminilidade da própria palavra que a torna tão atractiva. Ela lembra-nos sempre alguém. Mesmo quando alguém só existe no nosso pensamento, no nosso sonho. Ela será, nesse caso, o nosso desejo.
Ela, dizia eu, poderia ter qualquer rosto (vêm-me à memória os rostos de Fanny Ardant, Isabella Rosselini, mas são apenas exemplos) os seus cabelos teriam a cor que os deuses achassem por bem, apenas que a minha mão os pudesse afagar, os olhos ai os olhos, uma da minhas perdições, lagoas onde este naufrago se afogaria de boa vontade, os olhos teriam a cor que o meu coração visse.
Ela e lá volto eu ela não me canso de dizer esta palavra. É como beijar uns doces lábios vermelhos. Na minha língua este L tem um sabor de um beijo. Ela pôs a mão no meu ombro, fazendo-me virar para ver quem era, e disse olá à quanto tempo eu estava à tua espera. Porque demoraste tanto?
João Medina, no JL, no artigo Brel forever.
E, assim, ao partir tão cedo, Brel lograva ficar eternamente jovem, sem tempo de se converter num daquela récua de "cons" estupores que ele denunciava como o produto fatal do envelhecimento e da matura idade, daqueles jovens que começavam poe se darem ares de Casanova ou Voltaire, para mais tarde acabarem como notários, advogados, proprietários, académicos, generais, juízes ou carrascos, queixando-se das irreverências dos moços atrevidos e insolentes que os invectivavam e lhes mostravam os seus rabos...Agora que Brel se foi, só a sua pura voz nos resta, voz eternamente jovem,para os jovens do mundo intereiro aprenderem a ser irreverentes e causticos contra os cerdos desta imensa Bélgica planetária que vai de Buenos Aires a São Petersburgo e de São Francisco a Calcutá.
Li hoje, no jornal Público, um acontecimento que entra para a história do movimento olimpico. O húngaro Pal Szekeres ganhou a medalha de bonze em sabre na disciplina esgrima em cadeira de rodas. Este atleta magiar tinha em 1988 nos J.O. de Seul (competição normal, passe aqui o raio da expressão) a medalha de bronze na competição de florete por selecções, posteriormente teve um acidente de viação que o atirou para uma cadeira de rodas, mas o seu espírito de lutador manteve-se intacto e agora ele entra para a história como o primeiro atleta a ganhar medalhas nos dois eventos.
Bravo!
De súbito saíram todos de dentro de mim e foram-se reunir sentados à mesa de uma taberna. À volta de um jarro de vinho tinto lá estavam eles o poeta de rima coxa, o prosador sem ideias, o músico que não sabia música, o arquitecto que não sabia desenhar, o político anarquista, o cineasta daltónico, o ciêntista sem estudos, enfim todos. Ordem geral de trabalhos: o que é que a gente há-de fazer a este desgraçado idiota do qual faziam parte. Quer dizer o tipo anda para ali com a mania das corridas (pode-se dizer, com propriedade, que anda a armar em carapau de corrida). Os livros que tinha prometido ler nas férias amontoam-se. O projecto de fazer uma série de contos com um personagem e postalos no blog, népias.
- Ao menos quando andava às voltas com o coração magoado ainda tinha umas ideias catitas, disse o poeta.
- Safa, disse o ciêntista, aquilo ali era uma autêntica amálgama emocional.
- Pois, e dali não saía nada de consequente, disse o político.
- Do que ele precisa é tornar a ouvir os Concertos de Brandenburgo, do Bach, aquilo costuma acalmá-lo, disse o músico.
- Ó parceiro, disse o prosador, e que tal a Suite Sinfónica Scherazade After 1001 noites do Rimski-Korsakov, também o deixa fino.
- Ó pá não te metas na minha área, disse o músico, eu bem te entendo. Com que então as 1001 noites hem? Scherazade e aquele mistério e exotismo feminino oriental. Pois, pois.
E ali ficaram a discutir o que é que se havia de fazer com o tipo. Como é costume depois do 2º jarro de vinho já não diziam coisa com coisa e tiveram que recolher a casa. E depois é a mim prosador (embora às vezes também calhe ao poeta) por a acta da sessão aqui no blogue. Ainda se o político não tivesse a costela anarquista podia por em ordem estas discussões, mas assim...olhem é o que está a dar.
Pois! O post anterior tem que ter uma explicação. Ando a treinar para fazer uma maratona e esta carga de treinos, este massacre das pernas, está a afectar ( a aumentar) a minha líbido. E depois sai daquilo, assim de rajada. Para acalmar eis um equeno texto do livro que ando a ler - Aristóteles detective, de Margaret Doody, Círculo de Leitores:
"O gosto de Aristóteles pelas listas e categorias era uma fonte de divertimento para os seus estudantes. Certa vez, estava ele a leccionar nos bosques e nós atrás, quando um cão rafeiro se juntou a ele. Interrompemo-lo no fim de uma frase para lhe perguntarmos na brincadeira: «Aristóteles, a que categoria pertence este?». O mestre respondeu sagazmente: « Categoria de estudante. Hábitos maternos deploráveis, antepassados desconhecidos, modos insinuantes, fala fora de vez e assiste às aulas sem perceber.»
Um mimo.
É verão. O sol no alto trata por tu qualquer passeante duma qualquer praia neste país ocidental. Na tua pele o sabor salgado do mar onde te banhaste sabe-me bem (a tua pele sabe-me sempre bem quando a beijo). Deixas-te estar, deitada sobre a toalha, com o sol a queimar. Perto crianças a brincar numa algazarra que não é de todo desagradável e o fundo sonoro das ondas a beijar a areia da praia tornam este momento ainda mais aprazível. Adormeço, deitado a teu lado, com um braço sobre os teus olhos. Não quero essas duas janelas da alma em perigo pelo sol lhes bater. Podiam nunca mais me dar aqueles olhares que me incendeiam a imaginação. E eu gosto de que me pegues fogo, gosto de arder em altas labaredas que aquecem o teu desejo. Ouço, algures à volta, uma criança de colo a chorar logo acalmada pela mãe que em voz suave e em barulhinhos ternos desperta a sua atenção. De novo acordado, aquele bebé desperta em mim coisas esquecidas, coisas novas. Quem sabe poderei ainda ver-te assim, com um filho meu nos braços a embalar, a dizeres-lhe baixinho que o amas muito, com aquela voz curadora e terna que só as mães têm. E adormeço de novo, agora com a tua mão junto aos meus lábios. O tempo corre, deixá-lo correr, não temos pressa aqui onde estamos, na praia, sob o sol, os dois corpos deitados lado a lado sobre a toalha.
Pois é, bravo soldado Fhilipedes,
vou estar nos teus passos,
seguir o caminho que apontaste,
a meu lado mais uns quantos,
seguidores de Spiridon e Lázaro,
vão comigo até à meta.
Não há dor de pernas,
cansaço ou desespero,
que nos faça desistir
da dar a notícia que levamos.
Vanderlei de Lima ajudanos
vedando a passagem aos loucos
e aos que duvidam da nossa
força e perseverança.
Espera por nós uma linha
que tem de ser alcançada
chamada meta e desejada
e nós a encontraremos
por muito que isso custe.
No JL nº885, um artigo de Alexandre Pastor intitulado Alegrias e Pesares trás-me lembranças antigas e dá-me novidades bem interessantes.
Para começar: existe na Suécia um prémio, no campo da literatura infanto-juvenil ,com o nome de Astrid Lindgren, e foi ganho este ano pela brasileira Lygia Bojunga. Pois...mas quém foi Astrid Lindgren? Alguém se lembra ainda da Pipi das meias altas, principalmente a malta dos "enta"? Ela é a sua autora.
Neste artigo, Alexandre Pastor , escreve que as estórias da Pipi assustou muitas sociedades totalitárias (até a França) que censuraram partes da estória. Convenhamos, isto de por aqueles que dentro duma sociedade menos poder e direitos têm (as crianças, mas não só) a ter uma força quase sobrenatural e a fazer valer os seus direitos e sonhos assusta qualquer ditadorzinho de bolso. Há na literatura, que é normalmente classificada como para crianças, vários casos que são exemplos de subversão (no bom sentido, e odeio ter que dizer esta frase politicamente correcta), por exemplo As viagens de Gulliver. Curiosamente a escritora brasileira, Lygia Bojunga, disse uma vez: Na literatura infantil pode-se dizer muita coisa que escapa à censura. E acrescentou: E depois os generais não lêem livros para meninos.
Às vezes estes artigos trazem novidades que me são caras.