Segunda-feira, 31 de Janeiro de 2005
Pois, aquele post de sexta saiu sem pensar. (Não me lembro de ter escrito aquilo antes , Myryan, mas é bem possível que em comentários meus já tivesse dito qualquer coisa parecida porque eu estou ali, inteiro). De qualquer maneira o que está dito, dito está. Para agora deixo-vos poesia de Pablo Neruda (trad. Albano Martins):
Busco um sinal teu em todas as outras,
no brusco ondulante rio das mulheres,
tranças, olhos meio submersos,
pés claros que resvalam navegando na espuma.
Sexta-feira, 28 de Janeiro de 2005
Quem sou eu para falar do coração. Fui ao dicionário e lá estava: s. m. Órgão muscular oco, na cavidade torácica que recebe o sangue das veias e o impulsiona para dentro das artérias; é dividido em duas metades (direito ou venoso, e esquerdo ou arterial).
Mania não é? Pegar no dicionário e procurar a definição de coração só porque se anda a chafurdar em agruras emocionais. A verdade é que aquela resolução nº 1 que no princípio de Janeiro tomei estame a custar. Dói.
No filme Adão e Eva a personagem masculina, interpretado por Joaquim de Almeida, tem uma frase que resume tudo Porque é que a vida é tão difícil?
Acho que este homem que já enfrentou, desarmado, gente com armas, que já arriscou o pescoço por amizade, que sempre recusou a sentar em cadeiras altas, está a ficar demasiado cansado, demasiado desiludido. Demasiado e há demasiado tempo.
De qualquer maneira recuso-me a ser um dado que alguém atira num jogo de sorte ou azar. Simplesmente, recuso-me a deixar de ser quem sou, recuso-me a ser outro.
Um bom fim de semana. Para todos.
Quarta-feira, 26 de Janeiro de 2005
O JL (nº 895, já nas bancas) trás um Especial dedicado ao filósofo português José Gil, considerado por Le Nouvel Observateur um dos «25 pensadores mais importantes do mundo inteiro». Neste especial, Eduardo Lourenço assina um artigo focando o facto de José Gil escolher «como núcleo da sua reflexão o corpo» e tem, a determinada altura, esta frase:
«O corpo desempenha o papel de agente transformador das matérias em textura do plano de imanência a imanência do corpo ao espírito, da existência à vida, do pensamento ao mundo»
Quero fazer ressaltar a palavra imanência, o seu significado (qualidade ou estado de imanente imanente: que está inseparavelmente contido ou implicado na natureza do ser). Portanto, o corpo e o espírito estão indissociavelmente ligados. Enfim, havia pano para mangas para continuar mas isto é só para trazer à baila pensamentos e ideias e as deixar a fermentar.
No mesmo especial, na entrevista que Rodrigues da Silva faz a José Gil, o filósofo deixa-nos (como hei-de explicar?) uma constatação. Antes do 25 de Abril não existia, excepto na clandestinidade, um espaço de comunicação real das pessoas ou espaço público; tinha sido destruído pelo salazarismo. Este espaço público, espaço de trocas numa acção. O que faz com que encontros, conexões reais de pensamento, de trabalho, etc. operem no tempo real, foi, após o 25 de Abril, substituído pela televisão e a televisão agora, dá a ver, afastando, constituindo um álibi para tudo o que não se faz: a solidariedade real, o sentimento real, a comunicação e acção reais. Vemos sentados, passivamente. E a imagem absorve. Há um desfasamento entre o que vemos e o que se passa, o que cria uma anestesia. Perante uma tragédia, justificamo-nos vendo a televisão e, ao mesmo tempo, afastamo-nos dessa tragédia e dessa realidade. A televisão suga e ocupa o espaço público que não se refez depois do 25 de Abril.
Apesar de algum desalento que sinto em José Gil, penso que as coisas estão a mudar graças à Internet. Esse espaço de comunicação real entre as pessoas acontece aqui, na blogosfera. Comunicamos, interessamo-nos e apoiamos na adversidade uns aos outros. Isto é, já, uma autêntica irmandade. Penso que muita gente ainda não compreendeu que o futuro já está a acontecer e nós fazemos parte dele. Activamente.
Segunda-feira, 24 de Janeiro de 2005
Que farei eu com esse
Teu olhar no meu, devassando
Intimidades pertubadas
Na escuridão do pensamento?
Fugir talvez, como quem nega
O sol que lhe queima na pele.
Olhos, redondos como o mundo,
De gueixa, pézinho pequeno,
Totalmente abertos, tentando
Compreender a luz que passa
Tocando ao de leve os meus
Nos teus fixos, gulosos.
Quarta-feira, 19 de Janeiro de 2005
Já antes aqui o referi; quando venho do estádio para casa, ao fim do dia de trabalho do treino, costumo ligar o autorádio na Antena 2. Aquela hora apanho o programa Ritornello e nem vos digo as coisas extraordinárias que lá ouço. Desde gravações históricas e capazes de fazer babar qualquer melómano até factos e histórias sem as quais, devo reconhecer, eu seria mais pobre. Hoje dia de aniversário de Eugénio de Andrade (pseudónimo literário de José Fontinha) a música foi escolhida pelo próprio E.A. e como convidado alguém (desconhecido para mim e de que me lembro apenas do primeiro nome: Mário) que trabalhou numa editora de música. E as histórias, e as histórias. Admito, sou absolutamente fã (quase obsecado) por estas pequenas realidades dos grandes nomes que admiro. Por exemplo: aquando da primeira visita de Marguerit de Yourcenar a Portugal, para uma palestra, à chegada ao aeroporto ela fez questão de conhecer pessoalmente a nossa Amália Rodrigues. Em casa de quem este convidado diz que assistiu a um fantástica discussão entre Natália Correia e Ary dos Santos. Na mesma reunião estava presente Vinicius de Morais que volta e meia ia a outra sala encher o copo de scotch, quando voltava lá dizia a Amália - Lá vem o ministro da comunicação.
Estas conversas radiofonicas, garanto-vos, são preciosidades.
Duas pessoas cruzam-se todos os dias, quase sempre à mesma hora, meses, ás vezes anos, e nada, nem um cumprimento, nem uma saudação, cada um com o seu pensamento, o seu ritmo, o seu porto de chegada. Não acontecimento. Apenas um não episódio no dia a dia duma cidade. De repente, como se fossem outras pessoas e nunca tivessem passado um pelo outro, ele e ela olham-se nos olhos, de passagem, durante uns escassos e preciosos segundos. Não se voltam para trás, foi como se apenas fosse mais outro dia igual a tantos outros. Mas foi diferente, algo aconteceu, algo passou no olhar entre eles e alojou-se nos seus corações. Podem nunca mais se encontrarem mas não vão esquecer aquele momento e o rosto e os olhos do outro. Ou podem tornar a passar um pelo outro, dia após dia, portando-se como se nada tivesse acontecido. Um acontecimento não acontecido, se calhar só fantaseado. Uma ilusão de óptica provocada por um raio de luz matutino cujo reflexo lhes fez o coração dar dois ou três batimentos mais rápidos numa manhã de um dia de trabalho.
Segunda-feira, 17 de Janeiro de 2005
Trago-vos, para começo da semana, algo que vale a pena. Da revista Única, que acompanha o Expresso, editorial de Vítor Rainho:
"Numa época em que figuras pitorescas, dignas de um verdadeiro filme de série B, ganham protagonismo em cerimónias de homenagem às vítimas do «tsunami», fazendo ver que o país real existe e é muito triste, não podemos deixar de dar capa a um ahistória pujante de pessoas que se dedicam a ajudar os outros a manter a comodidade e a dignidade até ao fim dos seus dias."
Depois, no interior, a reportagem sobre associação Amara, criada por uma monja tibetana para dar apoio a doentes terminais e respectivas famílias. No mundo actual ainda há coisas e pessoas que nos fazem acreditar na humanidade.
Termino com a explicação da monja tibetana, Tsering Paldrön, do por que se converteu à causa de ajudar os outros:
"Percebi que é possível morrer com serenidade, rodeada de pensamentos positivos. A presença humana, solidária e atenta, é fundamental para aliviar a angústia. Alguém com quem dialogar, que é o receptáculo paciente da nossa revolta e da nossa dor. Alguém que por ser mortal como nós se deixa tocar, entende e nos aceita".
Quinta-feira, 13 de Janeiro de 2005
O tempo anda mesmo esquisito. Frio de rachar e inundações nos EUA, forte temporal no norte da Europa, na Rússia está um tempo primaveril o que já levou os ursos a sair da hibernação, étc. Não sei se se lembram dos ciêntistas dizerem que era possível que o terramoto que aconteceu na Ásia tivesse provocado, devido à sua magnitude, um ligeiro atraso na rotação do nosso planeta. Não estará tudo ligado? E que mais alterações se poderão verificar?
Quarta-feira, 12 de Janeiro de 2005
"Grande amoroso das noites solitárias das grandes cidades, Casais Monteiro absorverá na tarde o seu álcool maldito e desesperado, a música negra de todos os desastres, beberá as claridades culpabilizantes da madrugada, nesse Brasil dos anos 50 em que este outro estrangeiro absoluto, como Fernando Pessoa, acabará os seus dias numa solidão nada virtual, a mesma que embebe a trama abstracta e lancinante da sua melhor poesia."
Eduardo Lourenço, no JL.
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Chove, chove lá fora,
os pássaros estão recolhidos
nos beirais do sentimento,
como se a espera fosse
ela própria um sentimento.
Penas molhadas, sofrimento,
e a escuridão do céu,
provocação das nuvens.
Chove lá fora, la fora
onde passam os carros
e as pessoas deambulam,
quase sonâmbulas da vida
que lhes corre nas veias
e lhes alimenta o coração.
Chove lá fora.
Terça-feira, 11 de Janeiro de 2005
No seu livro O Cânone Ocidental, Harold Bloom refere que a escolher autores que representem o séc. XX ele referiria apenas nove: Freud, Proust, Joyce, Kafka, Woolf, Neruda, Beckett, Borges e Pessoa. Independentemente de referir três autores que me são caros (Joyce, Neruda e Borges), um nome eu penso que se eleva acima de todos os outros: Kafka. A ele eu coloco naquela categoria de autores que passam para além da própria literatura e atingem a universalidade. Junto com Cervantes e Dante ele pertence aquela categoria de autores que mesmo que um dia fiquem esquecidos, ele e a sua obra, as suas ideias passaram já a fazer parte da cultura humana. Os termos, os conceitos por eles transmitidos, quixotesco, kafkiano e dantesco estão já presentes em todas as línguas e culturas. Pessoalmente penso que Cervantes é o maior de todos, a ideis de D. Quixote enraiza no próprio humanismo.
Sobre Susan Sontag, falecida no final do ano, José Saramago dá um pequeno testemunho no JL:
"Não voltaremos a ver a madeixa branca de Susan Sontag, não ouviremos nunca mais a sua voz forte e ao mesmo tempo aveludada, não encontraremos nos jornais os seus artigos de análise, crítica e também de protesto e indignação, assegurando-nos de que a honradez intelectual continuava, obstinadamente, a não ser uma mera conjunção de vocábulos. Agora os Estados Unidos deviam estar de luto, se o luto cívico fosse, hoje, nesse país, compatível com a atmosfera perversa e rarefeita que o poder dá a respirar à mentalidade dos seus cidadãos. Susan Sontag «dançava com lobos», ela mesma era uma loba, e às vezes uivava de desespero porque a dor não acaba no mundo, porque a guerra não acaba no mundo, porque o humano tarda a chegar e o inumano nos vai calcando aos pés todos os dias e em todos os lugares. Adeus, Susan, não voltaremos a ver-nos. Vou sentir a tua falta, asseguro-te. Tu já és, segundo o lugar-comum, uma «perda irreparável». Amanhã começaremos a saber até que ponto."