Lembro-me de finais de verão, com as férias grandes a acabar, e ver passar os carros de bois carregados de cachos de uvas das vindimas e nós miúdos a correr atrás deles, trepando por eles para tirar doces uvas. Nunca nenhumas outras uvas me souberam tão bem. Lembro-me de ir brincar com os outros miúdos, descalço como eles para ser um igual, e a minha avó a gritar-me para calçar os sapatos.
O rés-do-chão da casa dos meus avós antes tinha sido um lagar mas, depois de um trabalhador lá ter morrido afogado no mosto por ter desmaiado com os vapores, o meu avô, homem sensível, resolveu acabar com o lagar. Encontrando-se dividido, o rés-do-chão foi alugado a duas pessoas, de um lado ficou uma oficina de bicicletas, do outro um sapateiro. Gostava de ficar largos tempos a vê-lo trabalhar. Benfiquista ferrenho, com galhardete pendurado na parede e uma águia de porcelana em cima do armário, ficava a discutir com o carteiro, outro benfiquista ferrenho, os feitos da equipa e o valor dos seus jogadores. O carteiro, que se deslocava na primeira bicicleta motorizada que eu vi, daquelas originais com o motor sobre a roda da frente, tinha junto ao guiador uma bandeirinha do benfica. Desconfio que muitas vezes as acabava a ronda muito mais tarde por causa dessas discussões.
Às vezes, com os meus cinco ou seis anos, chamava o meu cão, o rim-tim-tim, atravessava a aldeia e subia até os montes circundantes onde existiam antigos moinhos em ruínas. Gostava de andar ali no alto em contacto com a natureza e aperceber-me da vastidão do mundo e o quanto somos pequenos. Bons tempos.