Todos o conheciam. Desde os bairros altos da cidade, cingidos ao castelo senhoril, onde populam os ladrões, as prostitutas os mafiosos e o comércio, até à zona portuária, nas docas, nas tabernas, nos grandes armazéns e na estiva. Ele era conhecido de todos como uma mula de tabalho, motivo de riso dos alarves e dos que se coçavam pelas esquinas. De seu nome Artur, ele era o "mudo", e a sua história contava-se nas tabernas por entre dois copos de vinho.
Há muito tempo atrás, tanto que alguns fazem por o esquecer, Artur era conhecido como um homenzarrão. A rispidez da sua língua era tão famosa quanto a sua herculea força, e gabava-se de poder vencer qualquer homem no braço de ferro ou qualquer comerciante numa discussão. Quando se ouvia a sua voz no meio do barulho todas as outras se calavam, rendidas na força da expreção e no magnetismo da sua voz. Não havia conductor de escravos mais procurado, navio ou barca onde ele fosse o "encarregado de escravos" não tinha complicações. Ele era, por assim dizer, um dos pilares de força desta sociedade esclavagista.
Chegou um dia em que Artur mudou, para sempre. As opiniões divergem, como divergem sempre em casos destes; para uns foi um escravo oriental fortíssimo que lhe deu uma pancada na cabeça à traição, para outros uma queda violenta que lhe transtornou o centro da fala ao bater com a cabeça numa rocha. Num facto todos estão de acordo; a partir desse dia ele ficou mudo, sem soltar um pio como soe dizer-se, como se mudo tivesse nascido. Há um velho escravo libertado, dono de uma das mais concorridas tabernas do porto, que conta a quem o quiser ouvir (embora ninguém com o mínimo de bom senso acredite)que o que aconteceu foi algo ligado à magia e ao sobrenatural. Ouçamos no entanto a história contada altas horas da noite quando o ambiente já está pesado pelos fumos das drogas:
- Nesse dia o mar estava encapelado (era a ira dos deuses) e os escravos tinham sido obrigados a remar com todas as forças, tiradas à força de chicote se fosse preciso. Desde demmnhãnzinha até ao por do sol, quasi sem comer, era remat até cair para o lado, e então despertar sob a dor da chicotada e continuar a remar (todos sabem como é nos barcos de escravos). Ao anoitecer estavam todos cansados de mais, a morte seris, ela própria, um lenitivo. Mas o Artur puxava do chicote, e da proa à ré não havia escravo que não tivesse as costas retalhadas como azeitonas. Às tantas, como se estivessem combinados, embora isso não fosse de crer, todos os escravos pararam de remar. Vendo que nem à chicotada conseguia que eles trabalhassem, o Artur puxou de uma pistola e disse:
- Quém não serve para remar, não serve para viver. E dispara três tiros, encontrando cada um a cabeça de um escravo.
- Remam ou mato mais? - ameaçou.
Da leva de escravos novos, que iam para a venda no próximo porto e portanto não estavam a remar, saiu um negro alto e já de meia idade, que chegando-se ao Artur assim lhe disse:
- És um miserável e nada mereces. eu não castigo, mas pela causa da justiça, amaldiçoado, eu chamo isto a mim: Em nome dos deuses que a tua voz se cale até ao dia em que encontres, no fundo de ti mesmo, uma palavra digna de ser dita.
O Artur tentou responder-lhe, mas nada saiu desde então da sua boca para fora, excepto o ar expirado.
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O Artur tinha descido muito, no entanto ainda era um homem. Podia não falar, mas sentia como qualquer outro que falasse. Aconteceu que o Artur tinha uma mulher, muda como ele. e princípio, quando juntaram os trapinhos, talvez o Artur a não amasse, afinal ela era apenas a única com quem ele se podia juntar. Mas com o passar do tempo o contraste dos carinhos dela com a dureza com que era tratado no dia a dia fora de casa, fêz nascer no seu coração um sentimento carinhoso para com a sua companheira de desdita e cama.
Um dia aconteceu uma desgraça. A mulher de Artur, de seu nome Maria, quando vinha da lota, com o cabaz de peixe à cabeça, escorregou na calçada e foi atropelada mortalmente por um carro de transporte. Foram chamar o Artur, que estava a trabalhar perto dali num armazém, dizendo-lhe que a mulher estava a morrer. correu como um louco, atropelendo pessoas no seu caminho, e chegou a tempo de ver o último olhar amoroso da sua companheira, e o seu último suspiro.
Contam as pessoas que a isso assistiram, que as lágrimas correram fartas pelo rosto endurecido, que os seus soluços partiam o coração e que, quando apertou a cabeça da morta contra o peito, uma frase saiu, finalmente, dos seus lábios gretados:
- Ó meu amor!